Friday, June 10, 2005

Memórias III (com fundo moral)

Quando eu tinha onze anos, no longínquo verão de 91, ganhei um pintinho. Meus primos também ganharam. Eram pintinhos coloridos, então cada qual ganhou um de cor diferente—o meu era amarelinho.
Como vivíamos em um casarão com um vasto quintal, não parávamos quietos: era corre-corre, pega-pega, cuz cuz e mais uma porção de brincadeiras que exigiam sebo nas canelas.
Não preciso dizer que muitos desses pobres pintinhos foram pisoteados por nossos pezinhos ágeis e inconseqüentes. E cada vez que um pintinhos era massacrado, havia uma comoção geral, com tristeza maior para o respectivo dono—que ainda conseguia distinguir a cor de seu pintinho, confundida com sangue nas peninhas retorcidas.
Eu vivia com medo de que meu pintinho fosse o próximo a ser pisoteado, e na medida do possível evitava correr pelo quintal. Mas eu não podia controlar os outros, e um belo dia, chega a minha vez; ou melhor: a vez do meu pintinho. Estava lá o bichinho, ainda vivo, com o papinho pro ar e um pouco das tripinhas recém espragatadas para fora. Segurei ele por alguns instantes, com o coração doido, mas na esperança de que poderia haver salvação para a vida daquele bichinho; e nisso tive a apressada idéia de juntá-lo aos demais sobreviventes-- no total de nove, restaram quatro -- que a essa altura já estavam devidamente protegidos por uma cerquinha de arame (medida tardia).
Como eu estava sozinho no quintal, ninguém me alertou para os perigos do meu procedimento. Eu estava ali, naquele momento, sendo movido por um sentimentalismo extremado, pois estava crente de que a companhia dos outros pintinhos faria com que meu bichinho recobrasse a plena saúde; cheguei até a refletir sobre a relação entre tristeza, doença e solidão.
Mas qual não foi meu espanto e horror quando depositei o pintinho no viveiro. Presenciei, estarrecido, uma cena indelével: os outros quatro avançaram na tripinha exposta do meu pintinho, e bicando ela com tanta fúria, que extraíram o restante de tripa que ainda estava no corpinho dele—enfim, foi um banquete sinistro, que me deixou paralisado, sem a menor ação.
E foi naquela tarde que tive a revelação e o ensinamento que carrego até hoje comigo:
A vida em grupo é um perigo, e a sociedade é o resultado da soma dos variados grupos de pessoas com interesses em comum. Para se viver em sociedade, é preciso aniquilar qualquer resquício de sentimentalismo e fraqueza; e o mais importante: caso esteja ferido, esconda sua ferida até o fim, não a demonstre por um instante sequer; pois revelar o mínimo de uma ferida é o mesmo que pedir para que os outros exponham ela por inteiro, com crueza e voracidade. Ao menor sinal de uma fraqueza, pisam com gosto, para descobrir as demais, até reduzi-lo a uma espécie de mínimo denominador—material para estudo e lições para os demais. A diferença entre aqueles pintinhos e o resto da humanidade, é que os bichos eram dóceis somente na aparência física, enquanto os homens estendem a docilidade por palavras e princípios. Mas a crueldade é equivalente.

Passado o choque, tirei do viveiro o corpo morto do meu bichinho, caminhei pelas ruas com ele nas mãos (acho que meu rosto estava sereno nessa hora), me dirigi até a ponte, e joguei o meu pintinho no rio.

2 comments:

Franz said...

Olá formiga,
Conheço sim - mais por nome que pelas músicas - mas posso dizer que conheço.
Mas diga lá, ele tem alguma canção que fale de pintinhos massacrados? :^)

Ah, sabe de que estou a gostar muito?
Madredeus...bem, sempre gostei!

Ram said...

Madredeus é muito bom, mas é melhor ainda em filme, não acha? Quanto aos pintinhos, e as tripas, acho que podemos até ser reduzidos ao denominador comum pelos outros expondo fraquezas. Mas desde que nós mesmos não nos reduzimos, segue-se vivendo. O melhor da vida é mesmo ignorar a expectativa dos outros :). Os que importam, aparecem, e se não vão consertar sua tripa exposta, também não vão come-la...