Saturday, September 17, 2005

O mal do canastrão

Das coisas que um ator não pode fazer de maneira alguma:

Tentar roubar a cena e/ou tentar ser um bom ator. São esses os dois pontos periclitantes, e só esses, que são capazes de transformar um ator em um perfeito canastro.
Não adianta estudar, ler quilos e mais quilos de teorias - vejo atores que só pioram na medida em que se preparam. Tentar imprimir virtuosismo forçado nas atuações é uma forma de querer ser bom que também não dá certo; não é assim que se melhora a coisa toda.
Das vezes em que subi em um palco, mesmo quando ainda era bem novo, sempre mantive o foco da minha atenção na necessidade de embarcar no espírito daquilo tudo. É preciso entender que a encenação é como uma brincadeira na qual você conhece todas as regras, e a principal delas é: brincar, ou pelo menos fingir que está brincando. Se você não sabe embarcar nessa brincadeira, possivelmente também não consegue se entregar à um rítmo e deixar a música levá-lo, enquanto dança, pois está muito preocupado se vai dançar feio e desengonçado - o princípio é mais ou menos esse.
Atuar não é muito diferente do que aquilo que fazemos nos momentos inspirados da vida real; geralmente quando ninguém está vendo. É como quando estamos passeando por uma rua bonita e temos aquela repentina sensação de que tudo faz sentido, que a vida é uma orquestra maravilhosa na qual nos sentimos imensamente gratos por poder participar. Nesse estado de espírito, digamos...sublime, você se encontra suficientemente sensível para poder forjar todo tipo de sentimentos e sensações: dor, alegria, ódio, euforia, disposição, cansaço - podendo transitar por todos eles com muita facilidade. A alegria é o princípio, e é através dela que subjulgamos todos os outros sentimentos. É por isso que é difícil forjar alegria quando se está triste, enquanto que o contrário é bem fácil de se fazer.
A maior dificuldade não é encenar um texto consagrado, como um Shakespeare, mas sim manter aquela inspiração inicial, ou dos ensaios, mesmo depois das repetidas apresentações. Fazer isso é quase impossível, porque chega uma hora em que a mágica se quebra. É como o amor: uma hora acaba, e é aí blau, blau. Da mesma forma, quando estamos andando pela rua bonita, chega um momento em que aquela sensação de beleza e perfeição cessa, e você é lançado de volta para os problemas costumeiros da vida. No teatro, depois que isso acontece, vai da capacidade de cada um poder superar esse drama e prosseguir, sem teorias nem técnicas para ajudar; é preciso partir pro peito e pra raça - pelo menos era assim comigo. Nesse momento acho que o que me salvava era o pensamento: faça o que quiser, mas não tente ser bom ator.

Vejo o rosto constrangedor de um canastro durante uma cena; seja na tv, no cinema ou teatro, e consigo adivinhar os pensamentos dele no momento exato da atuação, o único que resta: sou um bom ator, sou um bom ator, sou um bom ator... - repetido como um mantra.
Se o ator está preocupado demais em ser bom, possivelmente não vai sobrar espaço na mente dele para poder sintonizar no que está acontecendo ao redor, isto é, no universo que está sendo posto em cena.
Um texto, sendo bom ou ruim, sempre possibilita uma variedade de elementos para compor um universo, ainda que pequeno, e é esse universo que vai guiar o ator, como no exemplo do dançarino levado pela própria música. Quando for encenar o texto de um determinado autor, procure ler tudo dele, até a biografia do sujeito. Se o autor for muito ruim, ou não lhe disser nada, tente procurar o correspondente bom dele, ou seja, alguma obra que já tenha trabalhado de maneira eficiente com o mesmo tema - é sempre possível dar um jeito; o que não pode é culpar totalmente um escritor pelos desastres de atuação, porque cabe a você, como ator, ampliar aquele universo que ele começou a construir; ou que pelo menos tentou.

Roubar a cena também é outro problema, porque você só consegue fazer isso se for bom, e para ser bom você precisa se livrar dessa idéia, antes de tudo. E assim temos um paradoxo.

1 comment:

Ram said...

A grande marca do grande ator é justamente saber corresponder com os atores com quem ele interage. Acho que atuar é mais um jogo de resposta emocional ao momento, do que ao texto até... Os grandes atores fazem até os atores ruins com quem eles contracenam ficarem bons.

Adorei o texto! Sou fascinado por teatro.