Sunday, August 28, 2005

Um velho tema.

Já tem muito tempo que eu quero tratar desse assunto por aqui, portanto serei prolixo.
Na verdade, só não escrevi quando me bateu a primeira vontade porque me faltou coragem.
Não, não falo daquela falta de coragem como a de quem “foge da raia” por medo -falo de preguiça mesmo. Sei que não é um texto definitivo; sei que ao longo dos anos ainda mudarei muitas dessas minhas idéias, e também sei que posso perfeitamente não mudar. Afinal, na vida, chega uma hora em que as convicções rejeitam mudanças, solidificam e não se transformam mais. É como nosso corpo: nasce, cresce, desenvolve, pára, depois envelhece.
Mas eu falei de convicções; não sei se é a palavra certa. Eu poderia substituir por crença, e só não o faço porque para mim ambas tem o mesmo significado.

O que é acreditar em Deus? – eis uma das minhas muitas perguntas freqüentes para as quais nunca obtenho uma boa resposta. De um cristão, por exemplo, eu ouço de tudo: desde que Deus se fez homem, e então é preciso acreditar na existência desse homem; até as mais complicadas teorias sobre a famosa Trindade – Deus é três. Se eu quiser acreditar, não só tenho que saber desse fato, mas também preciso entender como esse mecanismo funciona – sob o constante risco de estar sendo enganado pelo Adversário. Ou então, preciso passar por um ritual, como demonstração dessa crença; um simples ritual, sem o qual as portas do paraíso serão fechadas na minha cara. Bem, ainda nem mencionei o calvinismo...paremos com os exemplos por aqui.
Ora, talvez eu esteja procurando simplificar a coisa mas para mim, acreditar em Deus era o que eu fazia quando tinha quatro anos de idade. Simples, doce, singelo, sem esses complicadíssimos cálculos da medida da hipotenusa da raiz elevada ao quadrado cúbico.

Lembro de um certo dia, talvez a lembrança mais distante que eu tenha dessa vida; fazia um sol incandescente enquanto eu brincava sozinho no quintal- acho que eu não tinha nem cinco anos completos . Não lembro exatamente como aconteceu, mas muito provavelmente eu saí de uma área ensolarada do quintal e fui para a sombra, com a cabecinha quente e a vista um pouco turva. Vi um pedaço de céu azul quando olhei para o alto, e em questão de segundos minha vista começou a formar imagens: manchas coloridas, dessas que vemos quando saímos de um lugar muito claro e vamos para a sombra.
Naquele instante, não duvidei: aquela mancha era Deus. Minha imaginação foi capaz de ver semelhanças entre aquelas manchas e imagens religiosas, que provavelmente eu já tinha visto em alguma igreja. Mas não era só isso; para mim aquelas cores avermelhadas e destacadas no azul foi algo sublime, mágico, diferente. Não contei para ninguém, nem esperei por uma outra aparição, ou mensagens cifradas, milagres, conversas. Era doce pensar que Deus tinha aparecido para mim, ainda que só um pouquinho e silenciosamente – era o bastante. O mistério era uma coisa boa.
Lembro de que nunca havia passado uma noite em claro, então as três, quatro, cinco horas da manhã eram grandes mistérios insondáveis. Para mim, nesse horário a noite ficava tão preta, tão preta, que ninguém poderia enxergar nada, mesmo com a luz acesa.
Lembro do meu primeiro contato com a morte, quando vi um acidente de carro perto de casa. Fiquei muito triste; pensei na minha mãe, tive medo de que algo assim, algum dia, pudesse acontecer com ela. Não pensei em Deus, Ele não tinha nada a ver com aquilo –Deus era só uma mancha colorida e diferente, que olhava para mim enquanto eu brincava no quintal.

Mas onde estou querendo chegar? Bem, o que quero dizer é que Deus transformou- se, nas diversas culturas em que aparece, em maior ou menor grau, em um elemento destacado da vida . Não casa, não combina, não se concilia. Deus e vida são como água e óleo: não há mistura. Para que eu creia em Deus, eu tenho que esquecer de todos os movimentos da minha razão perante o mundo, para só então me concentrar em uma outra esfera de conceitos, que está à parte do que minha percepção me diz.
Claro, um religioso vai dizer: mas já está nas Escrituras que o entendimento de Deus não é o deste mundo, que a compreensão dos desígnios de Deus ultrapassam qualquer entendimento, etc, etc. E eu me pergunto: isso muda alguma coisa?
Não vou fazer aqui aquelas longas listas de razões para se duvidar da existência de Deus, porque não é a existência em si o x do problema. Para mim, Deus tanto pode existir como pode não existir; a vida, por si, já é um grande absurdo, então tudo o que possa vir depois dela é possível...assim na realidade, assim na imaginação.
A parte confusa, complicada e embaraçosa disso reside nas crenças, na forma como definimos Deus, e na maneira como Ele deve ser...”tratado”.
Não consigo entender os rituais, as explicações dos fenômenos, as profecias, os grandes eventos e milagres, os conceitos do Mal Absoluto. Tudo isso me parece que são coisas de uma terra distante, de uma outra era; quiçá de outro planeta. Não vejo a possibilidade de condicionar toda a minha vida a esses preceitos tão distantes, porque a própria vida nega todos eles. Quando falo “vida” não é para ser entendido no conceito religioso de “mundo”, ou “mundano”, porque as religiões, quando falam em mundo, referem-se mais aos homens e suas loucuras que a própria vida como um todo.
Já tentei modificar esse meu pensamento, já revirei aquela “Suma Teológica” de Tomás de Aquino de ponta cabeça, e tudo o que eu vi foi uma filosofia se esforçando ao máximo para validar os conceitos do cristianismo e torná-los mais compatíveis com a vida que se leva.

Depois da infância passei a desconfiar da imaginação, exatamente por isso: ela é como um papel em branco, que tudo aceita, e tudo pode acontecer dentro da minha cabeça, até mesmo aquilo que é estranho e alheio à realidade. A diferença é que enquanto tenho consciência de que tudo ocorre na minha mente, não há duvidas, nem questionamentos.
Acho engraçado, parece que é combinado, mas o que eu vejo de pessoas religiosas falando da arrogância do ateu não está escrito em gibi nenhum. Às vezes tenho a impressão de que esses religiosos temem uma possível superioridade do ateísmo, e isso só enfraquece as estruturas da crença, tornando-me ainda mais distante do que possa ser a compreensão delas. Ora essa, eu quero acreditar, eu tenho um real interesse e até mesmo uma certa admiração pela crença, mas como confiar nas convicções de uma pessoa se ela parece considerar o seu extremo antagônico como sendo uma ameaça, ou algo superior?
É uma mania estranha essa de atacar vorazmente e apontar as possíveis falhas do ateísmo; isso quando não atacam também o agnosticismo, o famoso “Spiritual but not religious”, ou , pior ainda, as outras crenças – claro, porque só a minha é verdadeira.
Depois ainda falam que o mundo persegue a igreja afim de extinguir o cristianismo da face da terra, e criam teorias absurdas e cheias de malabarismos, para que elas ganhem um fundo de verossimilhança.
A hipocrisia é uma chaga, e só vou citá-la rapidamente porque até mesmo entre os religiosos existe uma profunda consciência de que essa é uma triste realidade. Então você tem pessoas que querem usar a palmatória em meio mundo, mas não consertam suas próprias vidas, nem mesmo superficialmente.
O maniqueísmo é uma constante. Todo o pensamento da pessoa maniqueísta é bifurcado e condicionado a entender absolutamente tudo a partir desses conceitos de bem e mal . Até mesmo a arte, a filosofia e a ciência sofrem o ataque dessa praga. Tenho pavor do maniqueísmo; não porque eu seja bonzinho ou ponderado, mas porque procuro evitar essa asfixia mental.

Mas o meu objetivo aqui não é descer a lenha em religiosos, nem nunca foi em outra ocasião. Claro que os religiosos são peças fundamentais na continuidade das crenças, pois sem eles desapareceriam todas elas. Mas rejeito os ataques e consigo até vislumbrar pontos positivos em se acreditar em algo, embora não tenha certeza de que o mundo estaria pior sem as crenças.

Outro ponto embaraçoso: amar a Deus.
Como posso amar algo que está à parte da vida como eu a conheço, ou seja, como ela é?
Se tento compreender Deus – o que é essencial para qualquer um que se torne crente - preciso estudá-lo, conhecer os porquês, as mensagens, os eventos. Agora vamos contar com a hipótese de que eu aceite tudo o que está escrito na Bíblia como sendo verdade verdadeira, sem contestar nada...o que tenho como resultado? Um conceito.
Não posso amar um conceito, é desumano, desgastante; algo parecido com isso só pode acontecer nos limites do intelecto. Sendo assim, o que eu tenho não é amor, mas um conceito fechado que se aderiu à minha vida por conta da vontade e do pensamento. E o mais estranho é que grande parte do cristianismo defende que quem começa esse “movimento” de amor é o próprio Deus. E mais estranho ainda é quando um religioso fala do amor verdadeiro e do amor falso. O amor que acontece com as “coisas da vida” seria uma paixão = falso, enquanto que o único amor verdadeiro gira em torno de Deus, ou seja, do conceito. Isso reforça a minha tese de que Deus é algo que está à parte do mundo e da vida.

Vou confessar algo: eu já fui um fundamentalista religioso por duas semanas.
Simplesmente acreditei em tudo na Bíblia, sem contestar; fazendo as conexões mais variadas entre todos os eventos daquele livro, montando assim um quebra-cabeça. Lembro de que aceitei a existência de Deus como uma verdade incontestável e absoluta. Foi uma experiência confusa e desesperadora.

Hoje, olhando em retrospecto, posso ver quantos malabarismos minha mente fez para aceitar aquelas conexões bíblicas, relacioná-las com acontecimentos da minha vida e...*Cabrum!*. Deus existe.
Era uma fase delicada pela qual eu passava. Em momentos assim, todos queremos ter uma certeza, ainda que essa certeza não seja um consolo, como no meu caso. Acreditar em Deus não foi um refrigério para as angústias daquele momento difícil; muito pelo contrário. Ele existia, de fato, mas não me atenderia, pois para mim estava claro que o meu destino seria o mesmo que o dos dois terços da humanidade – a condenação eterna.
Eu lia muito o Antigo Testamento, e acho que a melhor analogia que eu encontro é a de um garimpeiro. Para cada criatura salva ou escolhida de Deus existia centenas de danados. Essa é uma das coisas mais incompreensíveis na lógica divina. Como nunca tive sorte na loteria, nunca fui santo e nunca gostei de enganar a mim mesmo, era evidente – Naquele Dia eu não estaria entre os salvos.

Com o passar de algum tempo, a vida foi entrando nos eixos, meu desespero foi desaparecendo pouco a pouco – cheguei até a pensar que Ele tinha enfim me perdoado.

Um crente que não leva uma vida totalmente entregue à religião é como alguém que diz torcer para um time apenas para não ficar sem resposta. Ir para a igreja e fazer discursos moralistas é mais uma manifestação de anseio e loucura humana do que de fé.
Apenas acreditar em um conceito e vestir uma camisa é algo pequeno e superficial demais se comparado aos resultados da prova dos nove fora. Em outras palavras, é absurdo demais pensar que uma pessoa pode sofrer eternamente, recebendo um pesado castigo divino, apenas porque ela não abraçou um conceito. E a diferença entre quem abraça o conceito e quem não abraça parece ser um mero detalhe - mais ideológico que espiritual.
Eu disse que qualquer absurdo por trás do mistério da existência é possível e aceitável, mas esse tem a capacidade de ultrapassar todos os limites: a razão espiritual.
Se o espírito não estiver condicionado a um dogma ele se torna nulo. É preciso dar razão ao espírito usando a mente - crença. Algo mais contraditório que isso me parece impossível.

O fato é que hoje acredito muito na vida para poder acreditar em Deus. E como essas duas coisas, vida e Deus, são inconciliáveis, optei por uma e esqueci da outra.
As minhas “questões” expostas aqui são só uma pequena parte das muitas duvidas que de certa forma ainda me fazem coçar o queixo. Ficou faltando, por exemplo: a questão das centenas de religiões espalhadas pelo mundo e pelas outras épocas, a fragmentação do cristianismo, a obsessão dos cristãos com assuntos como sexo e cultura, as incongruências bíblicas, a ciência...

7 comments:

J. Alencar said...

Homem, ficará louco! Eu desisti, eu acreditava, mas com o tempo criei medo daquele fanatismo inrracional, defender com unhas e dentes a existencia de algo tão abstrato, do desprezo com os que não são da mesma religião, acreditar em um livro com historias sem sentido, com alguns contextos historicos reais, mas com muita coisa difícil de engolir.
Há uma pequenina chance de Deus existir, muito muito pequena, e se ele existir, vai ter de perduar meu ateismo, como ele me dá racionalidade e quer que eu acredite em algo que não vejo? Algumas pessoas dizem que sentem Deus... Ok, ok, eu vou é dormir.

Franz said...

cín, sabe que eu pensei a mesma coisa?
Mas veja: usei meu livre arbítrio e apaguei todos eles ;^)
Como achei seu blog? Provavelmente vi algum comentário seu em algum lugar e cliquei na sua homepage.

J.Alencar, esse argumento do "sentir Deus" é uma forma de dizer: não procure razão nas coisas de Deus, porque Ele é amor...
Mas poxa vida, não somos capazes de sentir tantas coisa?
...incluindo aquelas que, segundo os religiosos, não são coisas de Deus. E então?

Abraços

Anonymous said...

Adorei o texto. E me lembrou alguns ensinamentos que li de Vivekananda Swami, entre eles (1) Amar a Deus é prioritariamente amar a si mesmo; (2) O indiano que acredita em Deus, mas ignora os milhoes que sofrem e passam fome na India e' um hipocrita; (3) E bom nascer na Igreja, mas e ruim morrer la (sobre dogmas); (4) E facil amar o mundo, o dificil e amar sua esposa ou ate o vizinho;
E me lembrou tambem de mais uma coisa que pensei sobre tudo isso, e ja ouvi de alguem, sobre a mente do homem que "acredita" em "Deus": quando algo da certo o merito e proprio, quando algo da errado a culpa e de Deus.

Franz said...

Eu gosto muito dos ensinamentos, de todas as religiões.
Nessas horas penso que Deus (caso exista) é bom, porque deixa todos eles acessíveis até mesmo para os
incrédulos, como eu.

:^)

Anonymous said...

Genial esse post. Resume em poucas palavras (sim, o post é grande, mas é impossível resumir isso em menos palavras do que as que estão aí) basicamente o que eu sentia e nunca conseguia explicar. As religiões ocidentais têm uma visão meio binária das coisas. Ou você é 0 e não acredita, tendo a sua alma condenada não importando o que você tenha feito em vida, ou você é 1 e acredita, tendo, ainda assim, que seguir uma vida de sacrifícios e privações para conseguir a salvação.

Cabelo said...

PS: o tema é velho, mas só agora temos liberdade o suficiente para discutí-lo abertamente sem ser vistos como hereges e queimados em fogueiras.

Franz said...

Será que alguém consegue ser o 1?
Talvez os tais ortodoxos consigam, quem sabe?

Existe sempre a possibilidade de ser um meio termo; as muitas denominações e doutrinas estão aí para facilitar isso. O problema é confrontar essas "arrumações" doutrinárias com a Bíblia -não bate.