Friday, June 03, 2005

Literatura brasileira


A coisa- não- deus
é o primeiro romance de Alexandre Soares Silva, que também escreve neste afamado blog .
Na verdade, o que me levou a adquirir o livro do Alexandre não foi o blog (que creio ainda não existir por essa época), mas sim a leitura que fiz de suas colunas no site Digestivo Cultural. Fiquei curioso em saber como alguém que escrevia tão abertamente sobre literatura, na Internet, se sairia escrevendo um romance.

O livro, narrado em primeira pessoa- o biógrafo do personagem central- conta a história de Júlio Dapunt, um garoto paulistano que está predestinado a ter, após a morte, um...aham destino completamente diferente dos demais. É que para todas as pessoas que vivem (ou já viveram)- e descontando o fato de que para algumas seja possível reencarnar- existirá a eternidade no além, com inferno e paraíso, enquanto que para Júlio está reservado um “desfecho” ateu- o nada. Mas este detalhe não reflete um possível capricho cruel de uma divindade, que aliás nem mesmo os anjos sabem se realmente existe- Ah! Mas deixemos de lado essa questão metafísica.
O problema é acidental, e Júlio, por ser vítima de um...digamos, acaso cósmico, acaba se tornando o centro de um verdadeiro abalo nas esferas celestiais, fazendo com que os anjos, após muitas ponderações, decidam oferecer-lhe em vida, como forma de recompensa, todos os deleites que ele jamais terá após a morte- pois que irá desaparecer no vácuo. Dentre essas regalias do além, pode-se destacar: belas mulheres, atrizes de cinema, contato com artistas e poetas já falecido, êxtase com substâncias especiais, festas e jantares, desfiles apoteóticos, competições esportivas, etc. Aqui vale lembrar que o paraíso do romance é um lugar físico, sendo que “lá” as sensações são mais vivas que no plano terrestre- este detalhe me fez lembrar dos conceitos do místico Emanuel Swedenborg sobre céu e inferno- onde as pessoas, após a morte, continuam com a personalidade que tinham em vida; personalidade esta que será decisiva para a distribuição das “almas corpóreas” em suas respectivas moradas eternas; ou seja, esqueça aqui os usuais conceitos de pecado e redenção. Aliás, os tais prazeres celestiais, listados acima, são pra lá de mundanos...convenhamos. O único pecado no paraíso de A coisa-não-deus é o mau gosto (ou mau gosto e rudeza); e é neste detalhe do livro que se percebe a característica principal do “internauticamente” conhecido estilo de Alexandre. Ter desenvolvido ao máximo a própria personalidade (Oscar Wilde), eis aqui o requisito básico para adentrar no paraíso de A coisa-não-deus- Quaresmeiras Roxas. Mas Júlio, por seu lado, não tem o que poderíamos chamar de uma personalidade desenvolvida. Tímido e introspectivo, se revela incapaz de aproveitar os prazeres que os céus lhe oferecem de mãos beijadas- aqui eu me lembro da fábula da raposa e da cegonha- tudo que Julio poderia desejar está, teoricamente, ao seu alcance; porém nada pode ser feito dos obstáculos de suas muitas limitações mundanas: timidez, introspecção, ausência de charme. Julio tem até mesmo problemas para se comunicar, por causa de sua péssima dicção
No início do romance, o biógrafo de Julio deixa claro que não se importa com certos problemas ditos modernos, como a incomunicabilidade entre as pessoas (Kieslowski) , e é aqui que está um dos pontos (oh! tensões) dramáticas do livro. A pessoa escolhida para servir de elo entre Júlio e o paraíso –o biografo da história- não está muito interessada nas limitações e problemas de Júlio; e ainda que estivesse, tudo indica que nada poderia ser feito a respeito. A atenção do livro fica assim apoiada e dividida no contraponto entre o drama particular de Júlio (drama mais para os outros que para ele próprio) e as excentricidades do paraíso, das quais o biógrafo participa. No espaço narrativo também há dualidade: a oscilação entre trechos que se passam na terra (em São Paulo), descritos com aspereza, e trechos no paraíso, o lugar ideal para se viver uma “vida eterna refinada”, e por onde desfilam tipos e referências da cultura, que vão desde o erudito até o universo pop- e do pop até o popizinho.

O problema do romance (não estou dizendo que o livro é ruim) é que os pontos de vista do escritor (biógrafo) não saem de cena por um segundo sequer; até aí tudo bem, pois estamos falando de um escritor-personagem com um estilo bem característico e pessoal ; mas a questão é: por essa mesma presença constante do autor (lê-se: a mente do biógrafo), o leitor é praticamente lançado em uma encruzilhada emocional, e obrigado a se decidir se sente pena do Júlio (e se revolta contra os céus e seus charmosos habitantes), ou se pouco se importa com a sua incomum situação - e essa escolha emocional acaba sendo decisiva para inserir o leitor em uma das duas “facções” nascidas do “racha” no paraíso, que dividiu os personagens entre os que se apiedam de Júlio e os que sacodem os ombros para a questão; sendo que a predileção do autor fica nitidamente voltada para esses últimos. E, por essa mesma escolha emocional, o leitor também fica ciente de qual seria sua própria (fictícia) morada eterna; ou seja, se é ou não é merecedor do paraíso de A coisa-não-deus. O ponto problemático não é a posição do autor diante da questão central (que talvez também seja a mesma que a minha), mas sim a insistência em demonstrar essa posição- às vezes cansa. E todo o esplendor do paraíso acaba se projetando e dependendo do Julio para poder reluzir, quando o ideal talvez fosse o contrário: as maravilhas do paraíso reforçarem o extremo oposto- a miséria do Julio –deixando assim o leitor livre da estranha sensação de estar sendo emocionalmente manipulado pelo autor.
Em dado momento, uma questão é lançada no livro: a renúncia ao mundo, feita por Júlio, é ou não é uma atitude covarde? Não sei, creio que não. A apatia do personagem só demonstra que suas intenções e desejos se desenvolvem apenas em sua mente (ele se considerava um gênio e queria ter uma banda de rock).. E, se não há o real desejo, também não há razão para lutar; o que faz dessa renúncia algo sem importância. Talvez, no fundo, o Júlio ache tudo aquilo um saco –é uma hipótese.
Mas o romance está acima da média da literatura brasileira atual e da literatura juvenil em geral, destacando-se tanto pelo tema incomum, quanto pela linguagem leve e acessível. Tendo ainda momentos bem bonitos (a primeira visita ao paraíso, a morte de Júlio) e de humor (os rumores e relatos a respeito de Júlio, feitos por figuras conhecidas: Louise Brooks, Sá Carneiro, Evelyn Waugh, etc...ou Churchill levando uma vida de escritor policial no paraiso) fazem com que valha a pena ler.
Aliás, creio que essa minha análise ficou um tanto cerebral; e agora me ocorre outro contraponto do livro: a sisudez estudada versus o divertimento sem compromisso. A arte, para a maioria dos personagens deste romance, é como um parque de diversões, ou um ônibus roxo com histórias em quadrinhos dentro; e por alguma obra do acaso (ou maquinações literárias), os personagens que se revoltam com o destino de Júlio são os mesmos que buscam seriedade e sentido para tudo, e não despertam lá muita simpatia no autor. Nesse sentido, A coisa-não-deus está mais próximo de uma história em quadrinhos ou de um conto fantástico do que de um livro sobre pequenas e grandes tragédias humanas, batalhas do espírito e todas aquelas coisas já bem exploradas no passado.

Alexandre Soares Silva/ A coisa-não-deus
São Paulo: Beca, 2000

4 comments:

Odorico Leal said...
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Odorico Leal said...

Oi, Franz

Ainda não li os livros do Soares, apesar da curiosidade que se impõe sempre que leio um ótimo post dele.

Com a sua resenha, a curiosidade aumentou: um paraíso com Evelyn Waugh deve ser divertido.

Talvez a melhor perspectiva para ler o livro seja essa mesma que vc destaca no último parágrafo.

Abraço

Anonymous said...

Olá, Franz. Boa e meticulosa leitura do livro - passados agora alguns anos desde que escrevi, tendo a concordar com você. Escreveria o livro de modo diferente agora - umas poucas mudanças, mas acho que deixariam o livro melhor. Anyway - vou linkar este post, se você não vê problema. Abraços! (Alexandre)

Ram said...

Gostei da sua análise o suficiente para me animar a ler o livro!